5 VISÕES SOBRE BRASÍLIA
Convidamos 5 personalidades para contar um pouco da sua experiência e da sua visão sobre a capital federal, que comemora 53 anos hoje.
A Capital Federal, que recebeu o título de Patrimônio Cultural da Humanidade pela Unesco, poucos anos após completar seu cinquentenário, ainda é uma das grandes referências mundiais em arquitetura moderna. Esse legado arquitetônico deixado por Lucio Costa, Oscar Niemeyer, Athos Bulcão e um verdadeiro time de competentes profissionais, acompanha uma outra herança, a icônica: os elementos criados para o Plano Piloto, além de formarem um grande acervo de arte moderna, tornaram-se verdadeiros símbolos de uma cidade e até mesmo da identidade cultural brasileira.
Lá está, construída em concreto e distribuída entre paisagens do cerrado, a iconografia com que todo brasileiro se identifica. Hoje, distantes meio século de seu nascimento, é possível fazer uma leitura mais crítica desse projeto, desassociada de modismos e do que era, à época, a grande novidade. Questionamos cinco personalidades de grande influência e que contribuem para com a vida social e cultural da cidade sobre como é a relação deles com a Capital Federal, seja ela do ponto de vista urbanístico, arquitetônico ou até mesmo pessoal, 50 anos depois do seu surgimento. As visões pessoais desses cinco colaboradores mostram muito além do relacionamento que eles têm com Brasília; elas se transformam em uma fotografia atual do projeto.

CLAUSEM BONIFÁCIO
Artista nato, Clausem Bonifácio é multifacetado. Músico e fotógrafo, tem uma relação muito próxima com a cena cultural de Brasília, sendo um dos fundadores do maior festival de música independente do Brasil, o Porão do Rock. Além disso, especializou-se em fotografia de arquitetura e em design de interiores e, por isso mesmo, exercitou seu olhar para detectar belezas e imperfeições na cidade.
Cheguei na capital federal em outubro de 1975, vindo do interior do Rio de Janeiro, e Brasília tinha quinze anos. Era um mundo diferente para mim, que tinha apenas oito. Ainda que não me desse conta das incríveis possibilidades que a cidade me oferecia, aproveitava tudo com total liberdade. Morávamos na 310 Sul, naquela época, um dos melhores endereços do Plano Piloto. Estávamos no quadrante considerado modelo, a menos de duas quadras tínhamos dois supermercados, um clube (Unidade de Vizinhança), um hospital, escolas primárias e secundárias, além da incrível Escola Parque, com atividades extracurriculares. Era sem dúvida um sonho que, fui saber mais tarde, foi sonhado primeiramente por Dom Bosco, depois pelo urbanista e arquiteto francês Le Corbusier, e finalmente concretizado por Oscar Niemeyer e Lúcio Costa.
Em minha adolescência, já na Asa Norte, tinha a nítida sensação de que éramos (eu e meus amigos) os “donos” de Brasília. Todos os dias nos reuníamos “debaixo do Bloco” para passarmos tardes felizes e intermináveis. À noite, no centro da quadra, era a hora em que tocávamos e cantávamos, e foi nessa época que descobri a minha primeira grande paixão na vida: a música. Andava de ônibus para todo o lado, a famosa Grande Circular era a linha mais usada por mim, cruzava as Asas de ponta a ponta. Sentava-me sempre bem no fundo do ônibus, e adorava quando ele, ao cruzar a L2 Sul em direção a L2 Norte, entrava na Esplanada dos Ministérios (o que nem sempre acontecia) e podia ficar admirando os prédios (o Palácio do Itamarati sempre foi o meu predileto). Tinha a impressão que tudo aquilo, de alguma forma, me pertencia. Tive ainda a sorte de fazer parte de uma turma muito saudável que tinha muito esporte e pouca droga na sua rotina. Essa turma reúne-se até hoje, e sempre nos recordamos daquela época, considerada por muitos de nós a melhor de nossas vidas.
Nos anos 90, comecei a sentir as mudanças. Casado e com filhos, ainda pude aproveitar toda a logística idealizada por Lúcio Costa para a capital federal, porém o aumento populacional fora da previsão começava a criar problemas inexistentes até então. Trânsito intenso e violência crescente ameaçavam o nosso estilo de vida brasiliense daquela época. Comecei a perceber que as pessoas que estavam chegando não tinham a mesma visão de liberdade que o projeto original da cidade sugeria, sinais de trânsito, cercas, grades, postes com fios (toda a eletricidade foi originalmente pensada para ser subterrânea) e outras intervenções foram sendo incorporadas sem que ninguém protestasse. E, assim, a cidade foi ficando cada vez mais parecida com qualquer outra cidade. Acho que Brasília perdeu muito de sua ideia original, porém eu, que vivi o começo e pude sentir toda a influência dos seus gênios criadores, ainda consigo aproveitar um pouco do que restou, e acho que a utopia, que envolveu a criação da cidade, estava em acreditar que as pessoas iriam entender o que ela lhes poderia oferecer. Brasília ainda está aí, para quem quiser viver um sonho real de morar em uma verdadeira obra de arte a céu aberto.

IVAN VALENÇA
Empresário de grande sucesso, é filho de um dos responsáveis pela construção de Brasília, e orgulhosamente considera-se candango. Devido a essa ligação muito próxima com a cidade, mostra grande comprometimento no resgatar e manter o patrimônio arquitetônico e a qualidade de vida na capital federal, sendo esta uma de suas grandes vocações como empresário. Ele utiliza seu trânsito intenso com arquitetos e artistas de renome que nasceram em Brasília ou que possuem obras na cidade para levar esta sua missão adiante.
Moro em Brasília desde o meu nascimento, em 16 de agosto de 1962. Portanto, tenho 50 anos de relacionamento com a cidade. Posso dizer que vivi todos os estágios pelos quais ela passou, crescemos literalmente juntos. Oportunidade rara de ver uma cidade única como Brasília surgir e se desenvolver. Sou apaixonado por ela, pelo projeto singular, pelos belos traços arquitetônicos, seus espaços vazios, o azul do céu e o horizonte largo. Amo arquitetura, porque amo Brasília. Viver Brasília me ensinou a respirar arquitetura, sentir a arquitetura como parte integrante do meu ser. A arquitetura de Brasília envolve e define um modo de ser e de existir, um estilo de vida. Mas esta possibilidade só existe para quem tem o privilégio de morar no seu núcleo histórico, no Plano Piloto, no espaço planejado e construído para ser uma cidade organizada e fluida, com qualidade no uso dos espaços criteriosamente pensados para trazer conforto e qualidade de vida a seus habitantes. Vivo na SQS 308 Bloco B, de frente para a Igrejinha, sou, portanto, um brasiliense premiado com o melhor que cidade pode oferecer. Minha situação não se reproduz para a maioria dos habitantes da cidade, que hoje vivem em uma típica metrópole brasileira. Presenciamos, nos últimos 20 anos, um crescimento acelerado e desordenado da cidade, que inclui o surgimento de novos bairros, condomínios e cidades satélites. Parece que, de repente, rompeu-se uma barragem e suas águas derramaram-se por todo o nosso território. Não existe um único espaço no Distrito Federal que não esteja ocupado. O setor público, atônito, tenta correr atrás das inúmeras demandas que um centro urbano requer como infraestrutura básica, energia, água potável, esgoto, sistema viário, transporte público, segurança etc., mas o descompasso é visível, e a cidade sofre, o cidadão sofre e a qualidade de vida fica comprometida. O sonho de uma nação moderna e desenvolvida, sonho da geração de JK, concretizado com a construção de Brasília, perde-se na falta de visão dos rumos da cidade e na inexistência de uma atitude de planejamento urbano e gestão pública ̶ e com a falta de consciência dos seus cidadãos e de suas instituições ̶ que cumprissem a tarefa de fazê-la crescer dentro dos preceitos que nortearam o seu plano original. Brasília, 50 anos depois, confirma uma característica da nação brasileira que pode ser apelidada de Belíndia, ao ser, para alguns privilegiados, como eu, uma Bélgica, e para os menos privilegiados, uma Índia. A Brasília que tanto amamos é hoje uma cidade brasileira típica, que sofre das mesmas doenças que assolam todas as outras metrópoles brasileiras e deixou de ser um exemplo para o mundo.

MANOEL BALBINO
Além de ter seu trabalho como arquiteto bastante reconhecido, é especializado em construções de grande porte em Goiás, e um dos importantes nomes da arquitetura de edifícios multifamiliares. Graduado pela UnB (Universidade de Brasília), época em que viu nascer sua admiração pela cidade, coordena um escritório que, hoje, tem grande atuação em Águas Claras, onde está o recente boom imobiliário em Brasília.
Conheci Brasília nos anos 60, ainda criança. Chegamos à noite, pelo Eixo Rodoviário, iluminado por uma sequência infinita de postes curvados elegantemente sobre a pista. Passamos embaixo do viaduto da rodoviária e entramos na Esplanada dos Ministérios com o Congresso Nacional se descortinando à nossa frente em uma visão monumental, fantástica, imagem que ficou gravada para sempre na minha memória. No início dos anos 70, moramos em Brasília durante alguns meses, na quadra junto da Igrejinha, entre o Clube de Vizinhança e o Cine Brasília. Havia ali uma colônia de férias e todos se conheciam, era uma festa. No fim de semana pegávamos ônibus e inventávamos passeios inusitados como nadar na Água Mineral, um bando de pré-adolescentes desfrutando daquela liberdade característica da cidade.
Em 1975, voltei a Brasília, desta vez como estudante na UnB (Universidade de Brasília). Foi então que consegui compreender aquela experiência nova, uma cidade sem lotes, sem muros, sem limites visuais, com escalas diferenciadas para cada atividade humana: era o Plano Piloto, projeto que fazia a rodovia chegar ao coração da cidade e redesenhava conceitos como a escala monumental e a unidade de vizinhança. Guardo comigo, até hoje, algumas moedas de 50 cruzeiros, cunhadas nos anos 80 em homenagem à cidade inventada por Lúcio Costa.
A feição da cidade pouco mudou desde aquela época. Igualmente, Paris é praticamente a mesma desde Haussmann. O fato é que as cidades com status de obra de arte precisam ser preservadas, não modificadas. Afinal, ninguém espera chegar a Veneza e ver um novo canal ou uma gôndola com desenho futurista. O que mudou em Brasília, especificamente no Plano Piloto, é resultado da expansão urbana e da pressão social das cidades do entorno. A cidade concebida por Lúcio Costa é um núcleo administrativo conciso para 500 mil habitantes. Essa parcela original da cidade felizmente ainda contém os traços do seu inventor.
Oscar Niemeyer escreveu que podemos gostar ou não da sua arquitetura, mas que não podemos negar sua originalidade. Com esse espírito, urbanista e arquiteto se encontraram no terrapleno da Praça dos Três Poderes criando o Congresso Nacional, edifício mais alto da cidade, esboçado nos croquis de Lúcio Costa e concretizado na arquitetura de Niemeyer. Pano de fundo da Esplanada, para Roberto Segre o Congresso é o edifício-símbolo da Nação, o mais significativo do período republicano brasileiro, o que, por si só, já seria suficiente para tornar Brasília digna de admiração.

MATHEUS SECO
Formado na Unb e mestre em Arquitetura pela Bartlett School of Architecture de Londres o arquiteto Matheus Seco é sócio do escritório DOMO Arquitetos, um dos nomes de destaque da nova arquitetura de Brasília. O trabalho produzido pela DOMO Arquitetos possui grande influência das soluções de baixo custo e grande eficiência energética da arquitetura modernista brasileira, em especial às obras dos arquitetos pioneiros de Brasília nos anos 60 e 70. Ao mesmo tempo os arquitetos têm grande interesse pelas novas tecnologias construtivas disponíveis e pelo contexto atual da cidade, buscando inspiração nos desafios que ele proporciona.
Ser arquiteto e urbanista em Brasília é um grande desafio e um grande privilégio. Temos a sorte de conviver diariamente com a arquitetura que é o símbolo da visão de um futuro pelo qual o Brasil aspirava na década de 50, durante os primórdios de sua industrialização. Vivemos na manifestação construída de uma proposta cultural e estética que é parte importantíssima da formação cultural brasileira, e vemos como o seu desenvolvimento a passos largos tem trazido diversos problemas e desafios. Devemos, acima de tudo, conhecer a cidade que abraçamos como nosso lar e entender que sua arquitetura, passada e presente, assim como seus registros fotográficos, contam sua história e apresentam possibilidades para o futuro.
Lúcio Costa e Oscar Niemeyer foram os arquitetos que tivemos a sorte de ter como responsáveis pela criação da nova capital do Brasil e pela consolidação da arquitetura moderna brasileira no cenário mundial. Ao contrário de outros países desenvolvidos na época, os quais baseavam suas visões de futuro em modelos clássicos de arquitetura, o então presidente Juscelino Kubitschek tinha a visão de que a capital do Brasil deveria ter arquitetura inovadora e desenho urbano que refletissem este espírito progressista, olhando para o futuro e não para o passado. Lúcio Costa viu no concurso de Brasília uma grande oportunidade de formular uma proposta livre dos padrões clássicos de cidade que vigoravam na época. A nova capital brasileira foi inaugurada em 1960, e também inaugurou uma nova fase no desenvolvimento das artes, arquitetura e sociedade brasileiras.
Os fundadores da nova capital, no Brasil essencialmente rural dos anos 50, queriam uma cidade que tivesse de 500 a 600 mil habitantes, e viam no transporte individual a solução ideal de mobilidade urbana. Hoje somos um país com população majoritariamente urbana, e Brasília tem quase 3 milhões de habitantes na sua área metropolitana, com a maioria dos postos de trabalho no Plano Piloto e a maioria da população morando no entorno. A enorme pressão no trânsito da cidade faz com que um modelo de transportes menos dependente do transporte individual, o qual já deveria ter sido amplamente adotado em Brasília e no Brasil, seja novamente discutido. O rápido crescimento da cidade também coloca demanda pelo aumento do número de moradias, fazendo-nos refletir sobre os contrastes entre a agradável vida na superquadra e a qualidade de vida em alguns bairros das cidades satélites. O impacto que a ocupação desordenada pode ter nos nossos escassos recursos naturais, além da preocupação com o tombamento da cidade e com sua preservação, pede uma atuação responsável, sensível e competente do profissional arquiteto e urbanista Costa já pensava nas possibilidades que a arquitetura e o urbanismo brasileiros poderiam ter durante o período desenvolvimentista dos anos 50 e sobre a rápida transformação cultural e econômica pela qual passava o país. Penso que vivemos um momento de transição muito semelhante, em meio a um mundo de transformações em ritmo alucinante, onde devemos lutar para que a preocupação com o desenvolvimento de arquiteturas e de cidades sustentáveis andem lado a lado com a preocupação com
o desenvolvimento econômico do país. No escritório, procuramos desenvolver um trabalho que tenha como ideal produzir uma arquitetura que possa responder adequadamente aos desafios da nossa realidade atual, e estar conscientes sobre as novas possibilidades criativas que ela apresenta. Estamos cientes de que cada novo edifício e espaço público que criamos podem contribuir para com a forma da Brasília contemporânea que desejamos ter.
Inspiramo-nos na ousadia e no infinito talento dos arquitetos pioneiros que criaram Brasília e nos outros que continuaram a moldá-la, até hoje, em um processo que apenas começou com a inauguração da cidade. Gostamos de pensar que Brasília continuará a ser não só um exemplo da concretização de um sonho de modernidade do passado, mas também uma cidade símbolo de um futuro com qualidade de vida e equilíbrio com a natureza. Ser arquiteto e urbanista na Brasília dos dias de hoje significa refletir sobre a cidade com a consciência e o respeito ao seu passado de 50 anos e estar atento aos desafios do desenvolvimento para suas próximas décadas, elaborando propostas que incorporem conceitos e ideias compatíveis com a metrópole contemporâneana qual Brasília se transformou.

MONALIZA MAIA
Lá está, construída em concreto e distribuída entre paisagens do cerrado, a iconografia com que todo brasileiro se identifica. Hoje, distantes meio século de seu nascimento, é possível fazer uma leitura mais crítica desse projeto, desassociada de modismos e do que era, à época, a grande novidade. Questionamos cinco personalidades de grande influência e que contribuem para com a vida social e cultural da cidade sobre como é a relação deles com a Capital Federal, seja ela do ponto de vista urbanístico, arquitetônico ou até mesmo pessoal, 50 anos depois do seu surgimento. As visões pessoais desses cinco colaboradores mostram muito além do relacionamento que eles têm com Brasília; elas se transformam em uma fotografia atual do projeto.

CLAUSEM BONIFÁCIO
Artista nato, Clausem Bonifácio é multifacetado. Músico e fotógrafo, tem uma relação muito próxima com a cena cultural de Brasília, sendo um dos fundadores do maior festival de música independente do Brasil, o Porão do Rock. Além disso, especializou-se em fotografia de arquitetura e em design de interiores e, por isso mesmo, exercitou seu olhar para detectar belezas e imperfeições na cidade.
Cheguei na capital federal em outubro de 1975, vindo do interior do Rio de Janeiro, e Brasília tinha quinze anos. Era um mundo diferente para mim, que tinha apenas oito. Ainda que não me desse conta das incríveis possibilidades que a cidade me oferecia, aproveitava tudo com total liberdade. Morávamos na 310 Sul, naquela época, um dos melhores endereços do Plano Piloto. Estávamos no quadrante considerado modelo, a menos de duas quadras tínhamos dois supermercados, um clube (Unidade de Vizinhança), um hospital, escolas primárias e secundárias, além da incrível Escola Parque, com atividades extracurriculares. Era sem dúvida um sonho que, fui saber mais tarde, foi sonhado primeiramente por Dom Bosco, depois pelo urbanista e arquiteto francês Le Corbusier, e finalmente concretizado por Oscar Niemeyer e Lúcio Costa.
Em minha adolescência, já na Asa Norte, tinha a nítida sensação de que éramos (eu e meus amigos) os “donos” de Brasília. Todos os dias nos reuníamos “debaixo do Bloco” para passarmos tardes felizes e intermináveis. À noite, no centro da quadra, era a hora em que tocávamos e cantávamos, e foi nessa época que descobri a minha primeira grande paixão na vida: a música. Andava de ônibus para todo o lado, a famosa Grande Circular era a linha mais usada por mim, cruzava as Asas de ponta a ponta. Sentava-me sempre bem no fundo do ônibus, e adorava quando ele, ao cruzar a L2 Sul em direção a L2 Norte, entrava na Esplanada dos Ministérios (o que nem sempre acontecia) e podia ficar admirando os prédios (o Palácio do Itamarati sempre foi o meu predileto). Tinha a impressão que tudo aquilo, de alguma forma, me pertencia. Tive ainda a sorte de fazer parte de uma turma muito saudável que tinha muito esporte e pouca droga na sua rotina. Essa turma reúne-se até hoje, e sempre nos recordamos daquela época, considerada por muitos de nós a melhor de nossas vidas.
Nos anos 90, comecei a sentir as mudanças. Casado e com filhos, ainda pude aproveitar toda a logística idealizada por Lúcio Costa para a capital federal, porém o aumento populacional fora da previsão começava a criar problemas inexistentes até então. Trânsito intenso e violência crescente ameaçavam o nosso estilo de vida brasiliense daquela época. Comecei a perceber que as pessoas que estavam chegando não tinham a mesma visão de liberdade que o projeto original da cidade sugeria, sinais de trânsito, cercas, grades, postes com fios (toda a eletricidade foi originalmente pensada para ser subterrânea) e outras intervenções foram sendo incorporadas sem que ninguém protestasse. E, assim, a cidade foi ficando cada vez mais parecida com qualquer outra cidade. Acho que Brasília perdeu muito de sua ideia original, porém eu, que vivi o começo e pude sentir toda a influência dos seus gênios criadores, ainda consigo aproveitar um pouco do que restou, e acho que a utopia, que envolveu a criação da cidade, estava em acreditar que as pessoas iriam entender o que ela lhes poderia oferecer. Brasília ainda está aí, para quem quiser viver um sonho real de morar em uma verdadeira obra de arte a céu aberto.

IVAN VALENÇA
Empresário de grande sucesso, é filho de um dos responsáveis pela construção de Brasília, e orgulhosamente considera-se candango. Devido a essa ligação muito próxima com a cidade, mostra grande comprometimento no resgatar e manter o patrimônio arquitetônico e a qualidade de vida na capital federal, sendo esta uma de suas grandes vocações como empresário. Ele utiliza seu trânsito intenso com arquitetos e artistas de renome que nasceram em Brasília ou que possuem obras na cidade para levar esta sua missão adiante.
Moro em Brasília desde o meu nascimento, em 16 de agosto de 1962. Portanto, tenho 50 anos de relacionamento com a cidade. Posso dizer que vivi todos os estágios pelos quais ela passou, crescemos literalmente juntos. Oportunidade rara de ver uma cidade única como Brasília surgir e se desenvolver. Sou apaixonado por ela, pelo projeto singular, pelos belos traços arquitetônicos, seus espaços vazios, o azul do céu e o horizonte largo. Amo arquitetura, porque amo Brasília. Viver Brasília me ensinou a respirar arquitetura, sentir a arquitetura como parte integrante do meu ser. A arquitetura de Brasília envolve e define um modo de ser e de existir, um estilo de vida. Mas esta possibilidade só existe para quem tem o privilégio de morar no seu núcleo histórico, no Plano Piloto, no espaço planejado e construído para ser uma cidade organizada e fluida, com qualidade no uso dos espaços criteriosamente pensados para trazer conforto e qualidade de vida a seus habitantes. Vivo na SQS 308 Bloco B, de frente para a Igrejinha, sou, portanto, um brasiliense premiado com o melhor que cidade pode oferecer. Minha situação não se reproduz para a maioria dos habitantes da cidade, que hoje vivem em uma típica metrópole brasileira. Presenciamos, nos últimos 20 anos, um crescimento acelerado e desordenado da cidade, que inclui o surgimento de novos bairros, condomínios e cidades satélites. Parece que, de repente, rompeu-se uma barragem e suas águas derramaram-se por todo o nosso território. Não existe um único espaço no Distrito Federal que não esteja ocupado. O setor público, atônito, tenta correr atrás das inúmeras demandas que um centro urbano requer como infraestrutura básica, energia, água potável, esgoto, sistema viário, transporte público, segurança etc., mas o descompasso é visível, e a cidade sofre, o cidadão sofre e a qualidade de vida fica comprometida. O sonho de uma nação moderna e desenvolvida, sonho da geração de JK, concretizado com a construção de Brasília, perde-se na falta de visão dos rumos da cidade e na inexistência de uma atitude de planejamento urbano e gestão pública ̶ e com a falta de consciência dos seus cidadãos e de suas instituições ̶ que cumprissem a tarefa de fazê-la crescer dentro dos preceitos que nortearam o seu plano original. Brasília, 50 anos depois, confirma uma característica da nação brasileira que pode ser apelidada de Belíndia, ao ser, para alguns privilegiados, como eu, uma Bélgica, e para os menos privilegiados, uma Índia. A Brasília que tanto amamos é hoje uma cidade brasileira típica, que sofre das mesmas doenças que assolam todas as outras metrópoles brasileiras e deixou de ser um exemplo para o mundo.

MANOEL BALBINO
Além de ter seu trabalho como arquiteto bastante reconhecido, é especializado em construções de grande porte em Goiás, e um dos importantes nomes da arquitetura de edifícios multifamiliares. Graduado pela UnB (Universidade de Brasília), época em que viu nascer sua admiração pela cidade, coordena um escritório que, hoje, tem grande atuação em Águas Claras, onde está o recente boom imobiliário em Brasília.
Conheci Brasília nos anos 60, ainda criança. Chegamos à noite, pelo Eixo Rodoviário, iluminado por uma sequência infinita de postes curvados elegantemente sobre a pista. Passamos embaixo do viaduto da rodoviária e entramos na Esplanada dos Ministérios com o Congresso Nacional se descortinando à nossa frente em uma visão monumental, fantástica, imagem que ficou gravada para sempre na minha memória. No início dos anos 70, moramos em Brasília durante alguns meses, na quadra junto da Igrejinha, entre o Clube de Vizinhança e o Cine Brasília. Havia ali uma colônia de férias e todos se conheciam, era uma festa. No fim de semana pegávamos ônibus e inventávamos passeios inusitados como nadar na Água Mineral, um bando de pré-adolescentes desfrutando daquela liberdade característica da cidade.
Em 1975, voltei a Brasília, desta vez como estudante na UnB (Universidade de Brasília). Foi então que consegui compreender aquela experiência nova, uma cidade sem lotes, sem muros, sem limites visuais, com escalas diferenciadas para cada atividade humana: era o Plano Piloto, projeto que fazia a rodovia chegar ao coração da cidade e redesenhava conceitos como a escala monumental e a unidade de vizinhança. Guardo comigo, até hoje, algumas moedas de 50 cruzeiros, cunhadas nos anos 80 em homenagem à cidade inventada por Lúcio Costa.
A feição da cidade pouco mudou desde aquela época. Igualmente, Paris é praticamente a mesma desde Haussmann. O fato é que as cidades com status de obra de arte precisam ser preservadas, não modificadas. Afinal, ninguém espera chegar a Veneza e ver um novo canal ou uma gôndola com desenho futurista. O que mudou em Brasília, especificamente no Plano Piloto, é resultado da expansão urbana e da pressão social das cidades do entorno. A cidade concebida por Lúcio Costa é um núcleo administrativo conciso para 500 mil habitantes. Essa parcela original da cidade felizmente ainda contém os traços do seu inventor.
Oscar Niemeyer escreveu que podemos gostar ou não da sua arquitetura, mas que não podemos negar sua originalidade. Com esse espírito, urbanista e arquiteto se encontraram no terrapleno da Praça dos Três Poderes criando o Congresso Nacional, edifício mais alto da cidade, esboçado nos croquis de Lúcio Costa e concretizado na arquitetura de Niemeyer. Pano de fundo da Esplanada, para Roberto Segre o Congresso é o edifício-símbolo da Nação, o mais significativo do período republicano brasileiro, o que, por si só, já seria suficiente para tornar Brasília digna de admiração.

MATHEUS SECO
Formado na Unb e mestre em Arquitetura pela Bartlett School of Architecture de Londres o arquiteto Matheus Seco é sócio do escritório DOMO Arquitetos, um dos nomes de destaque da nova arquitetura de Brasília. O trabalho produzido pela DOMO Arquitetos possui grande influência das soluções de baixo custo e grande eficiência energética da arquitetura modernista brasileira, em especial às obras dos arquitetos pioneiros de Brasília nos anos 60 e 70. Ao mesmo tempo os arquitetos têm grande interesse pelas novas tecnologias construtivas disponíveis e pelo contexto atual da cidade, buscando inspiração nos desafios que ele proporciona.
Ser arquiteto e urbanista em Brasília é um grande desafio e um grande privilégio. Temos a sorte de conviver diariamente com a arquitetura que é o símbolo da visão de um futuro pelo qual o Brasil aspirava na década de 50, durante os primórdios de sua industrialização. Vivemos na manifestação construída de uma proposta cultural e estética que é parte importantíssima da formação cultural brasileira, e vemos como o seu desenvolvimento a passos largos tem trazido diversos problemas e desafios. Devemos, acima de tudo, conhecer a cidade que abraçamos como nosso lar e entender que sua arquitetura, passada e presente, assim como seus registros fotográficos, contam sua história e apresentam possibilidades para o futuro.
Lúcio Costa e Oscar Niemeyer foram os arquitetos que tivemos a sorte de ter como responsáveis pela criação da nova capital do Brasil e pela consolidação da arquitetura moderna brasileira no cenário mundial. Ao contrário de outros países desenvolvidos na época, os quais baseavam suas visões de futuro em modelos clássicos de arquitetura, o então presidente Juscelino Kubitschek tinha a visão de que a capital do Brasil deveria ter arquitetura inovadora e desenho urbano que refletissem este espírito progressista, olhando para o futuro e não para o passado. Lúcio Costa viu no concurso de Brasília uma grande oportunidade de formular uma proposta livre dos padrões clássicos de cidade que vigoravam na época. A nova capital brasileira foi inaugurada em 1960, e também inaugurou uma nova fase no desenvolvimento das artes, arquitetura e sociedade brasileiras.
Os fundadores da nova capital, no Brasil essencialmente rural dos anos 50, queriam uma cidade que tivesse de 500 a 600 mil habitantes, e viam no transporte individual a solução ideal de mobilidade urbana. Hoje somos um país com população majoritariamente urbana, e Brasília tem quase 3 milhões de habitantes na sua área metropolitana, com a maioria dos postos de trabalho no Plano Piloto e a maioria da população morando no entorno. A enorme pressão no trânsito da cidade faz com que um modelo de transportes menos dependente do transporte individual, o qual já deveria ter sido amplamente adotado em Brasília e no Brasil, seja novamente discutido. O rápido crescimento da cidade também coloca demanda pelo aumento do número de moradias, fazendo-nos refletir sobre os contrastes entre a agradável vida na superquadra e a qualidade de vida em alguns bairros das cidades satélites. O impacto que a ocupação desordenada pode ter nos nossos escassos recursos naturais, além da preocupação com o tombamento da cidade e com sua preservação, pede uma atuação responsável, sensível e competente do profissional arquiteto e urbanista Costa já pensava nas possibilidades que a arquitetura e o urbanismo brasileiros poderiam ter durante o período desenvolvimentista dos anos 50 e sobre a rápida transformação cultural e econômica pela qual passava o país. Penso que vivemos um momento de transição muito semelhante, em meio a um mundo de transformações em ritmo alucinante, onde devemos lutar para que a preocupação com o desenvolvimento de arquiteturas e de cidades sustentáveis andem lado a lado com a preocupação com
o desenvolvimento econômico do país. No escritório, procuramos desenvolver um trabalho que tenha como ideal produzir uma arquitetura que possa responder adequadamente aos desafios da nossa realidade atual, e estar conscientes sobre as novas possibilidades criativas que ela apresenta. Estamos cientes de que cada novo edifício e espaço público que criamos podem contribuir para com a forma da Brasília contemporânea que desejamos ter.
Inspiramo-nos na ousadia e no infinito talento dos arquitetos pioneiros que criaram Brasília e nos outros que continuaram a moldá-la, até hoje, em um processo que apenas começou com a inauguração da cidade. Gostamos de pensar que Brasília continuará a ser não só um exemplo da concretização de um sonho de modernidade do passado, mas também uma cidade símbolo de um futuro com qualidade de vida e equilíbrio com a natureza. Ser arquiteto e urbanista na Brasília dos dias de hoje significa refletir sobre a cidade com a consciência e o respeito ao seu passado de 50 anos e estar atento aos desafios do desenvolvimento para suas próximas décadas, elaborando propostas que incorporem conceitos e ideias compatíveis com a metrópole contemporâneana qual Brasília se transformou.

MONALIZA MAIA
Nascida em Fortaleza, mudou-se para Brasília ainda jovem e se formou lá. Morou em diversos lugares do mundo, entre eles a Croácia e Panamá, e, devido a sua vasta bagagem cultural, tem uma visão muito crítica em relação à cidade. Seu grande interesse por culturas leva a profissional a buscar sempre maneiras diferentes de valorizar algum elemento de Brasília em todos seus trabalhos.
Cheguei a Brasília há mais de 30 anos. Naquela época, a menina assustada, vinda do Ceará para morar com os tios, via Brasília como a terra das oportunidades. Uma estrada mágica que, em vez de tijolos amarelos, se enfeitava com ipês dessa cor. Estar aqui significava mais qualidade de vida, mais chances de fortuna e conhecimento. Uma nova experiência, uma definição genuinamente brasileira de sonho.
A primeira lembrança do marco da grande mudança que estava por experimentar foi uma colônia de férias na Escola Classe 314 Sul. O sistema educacional de Brasília, inspirado nas pregações de Darci Ribeiro, estava todo refletido naquelas lindas escolas classe e escolas parque. Muitos anos depois, ainda sinto o mesmo deslumbramento de quando passei no vestibular para Direito na Universidade de Brasília (UnB). A biblioteca lembrava um templo egípcio, a reitoria e seu exótico paisagismo, o bandejão e as aventuras culinário-investigativas (nunca sabíamos de antemão do que era o suco da refeição do dia). A possibilidade de conhecimento cruzado, podendo cada estudante fazer sua própria grade e experimentar do conhecimento das diversas faculdades. Não existiam as inúmeras instituições privadas que proliferam Brasil afora, e passar para a UnB era passar a integrar um seleto grupo de privilegiados.
Mas privilégio não era, então, uma palavra que marcasse negativamente a cidade, era justamente o contrário. Brincávamos quando pequenos embaixo dos pilotis dos blocos das quadras. Dentro do conceito de uma das quatro escalas da cidade, monumental, bucólica, gregária, a escala residencial fazia com que todos fossem vistos de forma igual, sem distinção entre o filho do porteiro, e o do filho do juiz, entre o filho do funcionário público mais humilde, e o do pai que tivesse mais DASs. Para mim, o primeiro desvio dos sonhos de JK foi este: a perda deste sentimento que nos tornava todos iguais.
Mas em que momento o pequeno poder se apoderou de todos? Em que momento as famosas carteiradas se tornaram uma espécie de tradição local?
Creio que o marco para isso, talvez tenha sido a morte de Ana Lídia. Um crime nunca elucidado, mas que já dava pistas da degradação moral que estaria por vir. Uma espécie de antecipação grotesca da mistura de drogas, egos exacerbados, usurpação do poder que viria a se repetir no crime do índio Galdino dos Santos. Já perdemos uma certa inocência irrecuperável enquanto cidadãos.
Tivemos uma pequena recuperação de nossos antigos méritos quando abraçamos o respeito à faixa de pedestres. Gritamos aos quatro ventos que recuperávamos os ideais perdidos da cidade. Mas vã, nossa ilusão, logo a explosão demográfica das cidades-satélites e do entorno devido a pessoas atraídas por promessas demagógicas de políticos inescrupulosos, encheu a cidade. E o mel e o leite tiveram que ser divididos entre mais e mais bocas. Vieram junto a especulação imobiliária, os problemas fundiários, o trânsito caótico que suas vias não comportam, a falta de soluções de transporte coletivo decente.
Hoje maculam os ideais do fundador e dos candangos a violência e os escândalos que já não podem mais ser atribuídos só aos de fora.
No meio deste cenário árido, me encho de esperança com a florada dos ipês amarelos. Para mim, o maior símbolo da visão de D. Bosco e a de JK. Suas folhas caem no chão e meus olhos de menina insistem em enxergar uma estrada que há de nos levar de volta àqueles dias com mais cidadania, mais esperança, alegria e humanidade. Uma estrada para o começo.