OS 286 ANOS DA CIDADE DE GOIÁS

A primeira capital de Goiás comemora, cheia de charme, hoje, 286 anos desde que foi fundada, ainda sobre o nome de Arraial de Sant'Anna.

Publicado em: 25/07/2013
Em 1869 um viajante inglês, Richard Burton, veio ao interior do Brasil. Homem culto, poliglota, tradutor de obras inéditas do Oriente, Burton visitou Meca, andou pela África. Homem de letras e de aventuras, se hoje a conjunção desses talentos causa espanto, não era rara para o século XIX. No sertão brasileiro, Burton registrou suas impressões em vários textos, descrevendo diversas cidades brasileiras. E suas descrições não eram nada lisonjeiras. Burton criticou edifícios públicos, residências, o próprio traçado das cidades: sobre uma igreja, fala de “colunas jônicas desgraciosamente convertidas em pilastras”.



Poucos anos antes, outro viajante estrangeiro, o francês Saint-Hilaire, andou pela mesma região, aventurando-se ainda mais para o interior. De passagem pela cidade de Goiás, em 1847, também criticou a arquitetura que viu: o francês referiu-se ao Palácio Conde dos Arcos como “mesquinho, sem beleza”, até mesmo “sem solidez”. Continuou sua descrição do “prédio de um pavimento só e sem ornamentos externos”, salientando que o acesso se dava por uma “ridícula escada de uns poucos degraus”, tudo com “mau gosto”.



Pode parecer mais que coincidência que dois viajantes ilustres tenham desqualificado a arquitetura do interior do Brasil. Hoje reconhecida pela Unesco e pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), a arquitetura da cidade de Goiás não ganhou a simpatia dos estrangeiros no século XIX. Contudo, cem anos depois, outro viajante, desta feita o brasileiro Manuel Bandeira, dedicou-se a responder àqueles estrangeiros. Escritor e poeta consagrado, pensador das artes brasileiras, Bandeira, a juventude, planejara formar-se arquiteto. Na prática, o escritor abandonou o sonho, mas manteve seu interesse, tanto que, em 1963, quando publicou um pequeno guia de viagens, dedicou especial atenção à arquitetura, apresentando desenhos de detalhes e fazendo comparações entre estilos.



Neste guia, Bandeira retomou os relatos daqueles viajantes estrangeiros sobre cidades e arquitetura, dedicando ao assunto todo um capítulo intitulado “Impressões de viajantes estrangeiros”. O autor não se contentou em meramente apresentar as impressões daqueles que o precederam, mas passou mesmo a refutar o que considerou impróprio naqueles relatos.
Uma a uma, Bandeira vai contestando suas impressões, sempre partindo da crítica de cada viajante: a Saint-Hilaire, Bandeira lhe respondeu no mesmo nível impressionista que “o mau gosto parece que é do francês”. No caso de Burton, Bandeira atribuiu sua reação ao “convencionalismo de humanista” do inglês.


Fotos: Paulo Rezende

Nosso poeta sintetizou a incompreensão dos estrangeiros quanto à arquitetura colonial brasileira: “Os viajantes estrangeiros são quase sempre insensíveis aos elementos mais profundos ou mais sutis dos costumes e do sentimento artístico dos países que visitam.” E conclui indo diretamente ao ponto: “Para nós, brasileiros, o que tem força de nos comover são justamente esses sobradões pesados, essas frontarias barrocas, onde alguma coisa de nosso começou a se fixar”.
Ao defender a preferência brasileira por um determinado tipo de edifício, desagradável ao olhar europeu, mas plenamente dentro da tradição do gosto nacional, Bandeira lamentou: “a desgraça foi que esse fio de tradição se tivesse partido”. E não é outro o sentimento ao admirarmos, hoje, os belos casarões da cidade de Goiás. Certamente são singelos os edifícios goianos, mas plenamente em acordo com o ambiente onde foram edificados: os casarões com pé-direito alto, fechamentos de barro em paredes grossas apenas caiadas, sem a impermeabilização da pintura, tornam o edifício um ente orgânico. Todo esse conjunto de técnicas construtivas formou uma arquitetura ímpar, integrada harmoniosamente ao clima, ao meio ambiente e à própria paisagem.



A produção arquitetônica contemporânea em Goiás em muito pouco lembra aquele início de arquitetura vernácula, quase autóctone. Se hoje Goiás está afinado com a arquitetura e o modo de construir de outros centros urbanos do planeta, não logrou desenvolver aqueles princípios arquitetônicos tão bem assimilados no século XVIII.
Por tudo isso, a cidade de Goiás permanece como testemunho vivo de uma época em que a arquitetura se ligava à terra, ao local para onde era concebida. Destas duas tendências – convivendo lado a lado paradoxalmente em contraste e equilíbrio – é que emanam a diversidade e a identidade arquitetônica de Goiás. Caminhar hoje pelas ruas admirando a arquitetura da cidade de Goiás é mergulhar numa estética de outros tempos. Apreciar os edifícios no enquadramento do fotógrafo Paulo Rezende é captar uma outra dimensão desse patrimônio.

COMENTÁRIOS

  • Lisa Valéria - 01/08/2013 23h33
    Seu texto me convidou a (re)visitar a cidade.
  • José Divino - 30/07/2013 12h25
    Feliz em ver a matéria. Singular, única, minha terra, sou daqui e admiro cada pedaço da cidade. Há quem goste e que não goste, continuará depois de séculos encantado gerações...
  • Luciano Max - 25/07/2013 17h57
    Parabéns pelo post. adorei, amigo.

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