O ESPAÇO AO REDOR, O SOM AO REDOR

Marcela Borela conta as novidades que chegam aos cinemas em sua coluna aqui no portal Anual Design.

Publicado em: 01/03/2013
Muitos filmes brasileiros contemporâneos já buscaram retratar aspectos da vida brasileira. Há inclusive forte presença do realismo social no cinema produzido no Brasil a partir de meados dos anos 1990. No entanto, poucos filmes (e poucos cineastas) conseguiram uma representação tão sensível e urgente da classe média brasileira no campo da ficção como Kleber Mendonça Filho no seu recente e aclamado O Som ao Redor. O longa é um fenômeno de público no Brasil nesse momento, ao fazer com apenas 9 cópias 35 mm e algumas cópias digitais mais de 80 mil espectadores em 9 semanas no circuito comercial de salas de cinema. Um feito louvável para um filme de baixo orçamento. A este sucesso soma-se o alcance de O Som ao Redor no mercado internacional com prêmios em festivais importantes, lançamentos em circuitos comercias de países europeus, além da recente chancela de Melhor Filme Latino-Americano pelo Jornal The New York Times.



Por essas e por outras O Som ao Redor tende a ser o candidato brasileiro ao próximo Oscar que acontecerá em 2014. Contudo, para assisti-lo é melhor não esperar o Oscar. O filme pode ser visto em Goiânia, Brasília e São Paulo neste mês de março. Em Goiânia está em cartaz no Cine Cultura até dia 7 (sessões: 18h30 e 21 horas - mais informações no site do cinema www.cineculturagoias.wordpress.com). Em São Paulo pode ser visto no Espaço Itaú de Cinema da Rua Augusta e no Play Arte Bristol. Em Brasília pode ser conferido no Cine Cultura Liberty Mall.
A narrativa de O Som ao Redor é tensionada a partir de acontecimentos que se sucedem em uma rua do Recife. Existe um lócus: o bairro é Setúbal, próximo a praia de Boa Viagem. Ali aparece uma milícia que propõe fornecer mais segurança aos moradores, diante de um contexto claro de violência e medo. A partir disso o filme constrói sua sinopse. Uma antiga família tradicional do Engenho de Cana de Açúcar era dona da maior parte dos terrenos da rua, até que a expansão imobiliária verticalizou tudo, o que fez sobrar apenas uma casa, o resto são prédios. Na relação desta família com empregados, na relação de outras famílias com problemas da violência urbana e da perturbação psicológica causada pelos aglomerados é revelado um Brasil de graves tensões sociais.



Fala-se muito desse filme como retrato do Brasil contemporâneo. Inegável perceber como o cotidiano da vida de uma grande cidade brasileira é retratado com sensibilidade. Mas o sucesso do filme possivelmente não está diretamente ligado apenas à esse aspecto. O realismo naturalista (comum no melodrama contemporâneo brasileiro) é completamente dispensado, assim como é dispensada a espetacularização da violência ou a defesa cínica da visão de segurança proposta pelo Estado (me refiro aos casos emblemáticos de Central do Brasil, Cidade de Deus, Tropa de Elite I e II respectivamente). No lugar disso, o que está em cena tem uma latência e uma consistência psicológica que aproxima o filme dos suspenses e do terror de John Carpenter (para citar uma das referências presentes). O flerte com o terror traz para a encenação como um todo a presença simbólica da violência de uma maneira muito mais efetiva, porque toda colocada a partir do que a câmera mostra em termos de imagem, mas principalmente de som - seja uma violência oriunda da luta de classes, seja a violência própria à alienação da vida burguesa nos grandes centros urbanos e seu espanto pela perda do espaço natural. Trata-se então de uma violência das pequenas coisas, presente no cotidiano dos sujeitos contemporâneos.
Tudo no filme respira e se move no mesmo tom e mostra que toda tensão é visível e invisível ao mesmo tempo. Talvez por isso o grande trunfo de O Som ao Redor seja mais estético que político, o que faz dele uma obra universal no sentido do que é novo em termos de cinema no mundo. Kleber Mendonça Filho nos mostra que não é possível ver tudo, e pode ser que as grades e os muros atrapalhem bastante.
O filme é também uma inquietante reflexão sobre papel da arquitetura na vida contemporânea. O Som ao redor significa o espaço ao redor, ou seja, tudo que invade o espaço particular do sujeito urbano que se quer cada vez mais isolado da coletividade pelo medo da violência, uma alienação que provoca outros tipos de miséria que não a física, mas a miséria das relações sociais e da experiência humana. Nesse sentido, a arquitetura das grandes cidades e o urbanismo esquizofrênico que a impede de exercer humanidade se tornam personagens do filme. O espaço pressiona os personagens. Os sujeitos se escondem, se protejem uns dos outros. O conflito entre espaço público e privado é latente.



Se você pode ser assaltado na rua ou se sua casa pode ser invadida a qualquer momento, são as grades, os muros altos, as cercas, que tentam, muitas vezes em vão, simular um imaginário afetivo capaz de permitir a vida numa grande cidade. Mas longe das tentativas de simulação de conforto é preciso se perguntar: qual a origem dessa violência? O Som ao Redor responde, com delicadeza, que o barulho todo que ouvimos tem muito a ver com isso.

Assista ao trailer: